O preço dos alimentos tem chamado bastante a atenção recentemente. Muitas lupas de análise pousam sobre ele. E isto sucede em nível mundial. Aqui no Brasil, em particular em fins de 2010, a elevação de preços atingiu mais incisivamente os hortifrutigrangeiros e não deu tréguas neste ramo da agricultura. E, novamente, os índices medidores da inflação captam vigorosos aumentos agora em setembro. A exemplo, o IPCA do IBGE, medidor inflacionário oficial, detectou rescaldos nos preços dos gêneros alimentícios, assim como o seu congênere, o IGP da Fundação Getúlio Vargas. A princípio não parece ser algo extraordinário preços que sobem e descem na agricultura, atividade de risco em que a oscilação climática desempenha papel preponderante na fixação dos preços de produção. Antes fosse apenas mero desajuste ocasional do clima obediente ao esperado, como se poderia supor. Nem isso não é mais, os desequilíbrios intensificaram, o que acinzenta um cenário de perspectivas melhores. Então, faz-se necessário identificar quais outros fatores estão despertando os preços ainda mais para cima num setor da economia tão significativo, haja vista que são os milhões de trabalhadores da parte inferior da pirâmede social, justo a faixa mais extensa com os menores ganhos salariais, os que mais devem padecer devido às oscilações altistas dos alimentos. Em primeiro lugar, o capitalismo padece uma crise mundial que não é meramente cíclica, manifestação pertencente às vicissitudes dele próprio como acontecia desde o século XIX. As crises cíclicas visitam habitualmente o sistema como a traduzir a ação espontânea das contradições do seu movimento. Até aí não haveria anormalidade. Mais adiante, as forças atuantes do sistema eliminam descompassos e desarranjos e o crescimento econômico retoma seu curso usual. Transcorridos 200 anos, o panorama do capitalismo atual é de um sistema social amadurecido, que produziu opulência para vastas camadas da população da América do Norte e da Europa. E chegou até um ponto em que é tremendamente difícil avançar produzindo ainda mais riquezas, mercadorias e serviços de diversas naturezas. Apenas por satisfação do raciocínio, o estadunidense médio já possui com facilidade quatro automóveis em casa, que quantas vezes ele se obriga a deixar um deles na rua, e muito comum geladeira de porte médio de 600 litros. Ele não necessitará ter 10 automóveis, muito menos um refrigerador frigorífico em seu lar apenas para contentar a necessidade de vender da grande indústria. Ou trocar a cada mês de automóvel e geladeira. Não há sequer sensatez nesse proceder. Ademais a indústria precisar ter perpectiva de lucro compensador. O que se quer afirmar é que a crise não é somente cíclica. Ela atingiu toda a capacidade de ampliação do sistema produtivo. O sistema financeiro estadunidense promovia este consumismo frenético mas fraturou pelo fato mais premente de que a produção não consegue acompanhar o ritmo alucinante da esfera financeira que girava com intensidade bem mais rápida do que a produtiva. Então o mercado financeiro desabou. O fundamento do sistema capitalista está na produção de mercadorias, mensurável por intermédio do produto interno bruto (PIB). A validade desta assertiva é universal. Como na maior economia planetária, o crescimento desse PIB não consegue mais se recuperar com taxas de expansão mais expressivas, como acontecia antes, todas as formas de aplicação financeira foram vitimadas. Os papéis financeiros que se negociam necessitam de uma contrapartida da economia real. Se há um papel sendo oferecido de um lado é com intuito de financiar algo concreto que está sendo demandado de outro. Como este frágil equilíbrio foi rompido, a especulação financeira foi abalada. Este ocorrido recente assume enorme importância posto que quando se praticam aplicações, a moeda não possui nenhum custo de manutenção, como por exemplo no caso de imóveis. O custo de manutenção da moeda é praticamente zero. Em contrapartida, um imóvel precisa ser limpo, arejado e reparado com periodicidade. O dinheiro não precisa de alguém para lhe tirar o mofo abrindo as janelas. Os especuladores foram procurar outras formas de lucrar. E uma das que se tornou mais viável é transação com produtos primários. Ao invés dos especuladores comprarem papéis eles estão comprando soja, milho, trigo, petróleo, mercadorias de uso universal, todavia compram hoje supondo o preço que elas se encontrarão quando a safra for colhida daqui a seis meses. Como o dinheiro especulativo traduz quantia ainda fabulosa e não foi inteiramente pulverizada pela crise financeira, há bilhões de dólares disponíveis para adquirir gêneros alimentícios universais. Agora são bilhões despejados antecipadamente na compra das commodities agrícolas e minerais. Uma safra de soja pode ser comprada hoje, antes de ter sido colhida. O comprador negocia o preço que imagina que será no momento da colheita. Quando a colheita ocorrer efetivamente caso o preço seja maior ele poderá revender àquele preço, realizando lucro especulativo. Para isso ele detem em mãos um contrato de compra e venda. Se o preço for menor, ele perde. Não vai vender a soja comprada por um preço menor do que pagou. Como as variações climáticas estão se tornando violentas e mais amiúde, a especulação com alimentos consegue tirar proveito disso. No primeiro semestre de 2011 houve excesso de chuvas no Sul do Brasil, agora aparece o fenômeno natural la Niña, com o esfriamento das águas do oceano Pacífico equatorial, porém surge desequilibrado, acima da média, com repercussões mundiais. Então, melhor negociar hoje a safra de amanhã. É um jogo de apostas no preço futuro. O grande proprietário rural poderá ganhar dado que antecipa o preço da safra, defendendo o valor produzido e lucratividade correspondente. Entretanto, os trabalhadores que necessitam viver vão pagar na outra ponta o preço de uma comida mais cara. Quanto aos hortifrutigrangeiros, parte imprescindível na alimentação humana, eles não se classificam como commodities, portanto não podem contar com a proteção do mercado futuro que compra hoje o que vai ser colhido amanhã. Hortifrutigranjeiros em inúmeros tipos de vegetação são praticados em pequena propriedade familiar. Ainda não se inventou colheitadeiras nem de maçã, nem de couve, nem de caqui, nem de alface, nem de uva... Estas máquinas super avançadas existem primordialmente para a colheita de grãos, semeados em vastas extensões que proporcionem alta produtividade. O outro fator que eleva o preço dos alimentos habita na energia. O petróleo é recurso com dias contados por volta de mais 40 anos. Trata-se de uma energia fóssil, proveniente de matéria orgânica decomposta, que a natureza entregou pronta para a humanidade, feita há 200 milhões de anos que em 200 anos o homem vai conseguir dissipar. Então, é preciso procurar fontes alternativas. Isso afeta fortemente o milho que está com as cotações mais altas já alcançadas, o que abrange todos os derivados do produto. O milho proporciona a maior dentre todas as cadeias de alimentos fabricáveis, na ordem de mais de 1 mil variedades, sem contar a extração de combustível. E aí se termina numa contradição difícil de conciliar, não se consegue obter na mesma quantidade comida e etanol para automóveis. O movimento para qualquer um das direções faz o preço subir. A agricultura de alimentos expulsa a de energia e a recíproca é verdadeira. A exceção pode estar, talvez, em países de clima tropical. E com alimentos em alta não existe taxa de juro SELIC, administrada pelo Banco Central que possa amainar, pela redução da demanda o que representa custo de produção. A Bolsa de Chicago, que estabelece o preço das commodities, com negociadores manipulando bilhões de dólares e atraindo outros bilhões para o pregão eletrônico, por falta de opções de papéis financeiros rentáveis, não vai prestar atenção ao Banco Central brasileiro, muito menos ao de qualquer outro país da espaçonave Terra. Esta novidade de exacerbação especulativa com commodities, decorrente de crise financeira a par com a variação climática, aponta agora o dedo no cenário econômico, declarando: -Estou aqui!, exigirá dos governos mundiais cuidado especial com a agricultura no que diz respeito às coberturas de risco aos pequenos agricultores, junto com a promoção urgente de assistência aos desvalidos e, do mesmo modo, o monitoramento e punição bem mais rigorosas aos agressores do meio ambiente, quanto ao uso da terra, do ar, da água além de chamar à responsabilidade cada terráqueo. Não é exagero dos cientistas quando se afirma que é a sobrevivência da humanidade que está em jogo. O equilíbrio para a vida humana foi ou está sendo rompido e as suas fronteiras são estreitas. O lindo planeta azul esférico viajante do universo se desloca por enquanto solitário no silêncio do cosmos e a próxima galáxia dista a milhões de anos luz. Não há por onde escapar e o deus cronos corre contra a humanidade.